Coronavírus

Acha mesmo que sabe o que aconteceu no mercado residencial no 2º trimestre?

É compreensível que fazer previsões sobre os efeitos da crise pandémica se tenha tornado no novo desporto nacional. Mas este texto não é sobre antever dados que ainda não existem. É sobre algo mais elementar: interpretar a informação disponível com critério.

No dia 22 de Setembro o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicou o Índice de Preços da Habitação relativo ao segundo trimestre de 2020. Os dados com maior destaque foram:

  • a subida de 7,8% dos preços e uma descida de 21,6% do número de transacções face ao período homologo (2T 2019);
  • uma subida de 0,8% dos preços relativamente ao trimestre anterior (1T 2020);
  • a redução de 35,2% no número de transacções entre Abril de 2019 e Abril 2020.

 

Mas será mesmo que a quebra do negócio imobiliário residencial durante o confinamento não foi mais significativa? E que, depois de sairmos à rua, o valor das casas continuou a subir?

 

Foquemo-nos então no mês de Abril. Recordo que o estado de emergência vigorou entre 19 de Março e 2 de Maio. Lembra-se do que estava a acontecer nesse período? Aqui vai uma pequena ajuda:

  • parte significativa do comércio encerrada;
  • filas à porta de supermercados e farmácias;
  • restauração impossibilitada de servir refeições nos estabelecimentos;
  • técnicos de saúde a dormir em hotéis e alojamentos turísticos por receio de contagiar familiares;
  • autoridades de saúde a questionar uso de máscaras, hoje obrigatório em espaços públicos fechados;
  • forças de segurança a sensibilizar as populações quanto ao dever recolhimento, e operações na estrada a assegurar a validade dos motivos para as deslocações;
  • proibidas saídas do concelho de residência no período de Páscoa;
  • decréscimo de 60% de deslocações para locais de comércio e lazer (segundo o relatório de mobilidade da Google de 30 de Abril).

 

Sejamos francos: parece hilariante pensar-se que no mesmo mês em que existe uma redução de 60% “nas tendências de mobilidade para lugares como restaurantes, cafés, shopping centers, parques temáticos, museus, bibliotecas e cinemas”, o mercado se tenha contraído apenas 35%. Creio que, se houve mês da minha vida em que não convidei ninguém para almoçar, esse mês foi Abril. Mas se houve um mês na minha vida em que não esperaria ouvir “não posso almoçar porque vou ali comprar uma casa”, estou seguro que esse mês teria sido também Abril de 2020.

Praça do Comércio em pleno estado de emergência, Abril de 2020

por Miguel Valente

Mas então, o que é que não bate certo?

O INE contabiliza as transacções das casas e o respectivo valor com base em comunicações da Autoridade Tributária sobre a liquidação do IMT (Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis), que é feita na data da escritura ou no dia útil anterior. O que acontece é que em Portugal, grande parte das transacções são precedidas por contratos promessa, nos quais se define o montante da transacção e o comprador adianta um valor ao vendedor. Tipicamente, sem prejuízo de poder haver prazos mais dilatados, diria que estes contratos prevêem um prazo máximo de cerca de 30 dias até à escritura quando não existe recurso a financiamento bancário, e 60 ou 90 dias quando há lugar à constituição de uma hipoteca.

Isso significa que o número e os valores de transacções que o INE comunica se reportam, em grande parte dos casos, a negócios sinalizados 1, 2 e 3 meses antes da transacção ser registada. Sendo que, tradicionalmente, a desistência do comprador implica a perda do sinal. O que, presumo eu, terá contribuído significativamente para “segurar” muitos negócios no 2º trimestre. Ou seja, o número de escrituras caiu 35% mas, como é perfeitamente normal à luz daquele contexto tão particular, a dinâmica do mercado – cujo impacto no número de transacções só se revela em parte nos meses seguintes – ter-se-á ressentido de forma muito mais expressiva.

 

Mas os dados do INE não são fiáveis? São. São os mais fiáveis a que é possível ter acesso em Portugal. O que importa saber é que, muitas vezes, o mês em que a transacção é registada, não coincide com a data em que o preço foi definido, contratado e sinalizado. Nada disto é novo. Mas ter presente esta informação nunca foi tão pertinente porque, nunca antes, num período tão curto, existiu uma alteração conjuntural tão radical: recordo que apenas duas semanas antes de ser decretado o estado de emergência a maior parte dos portugueses vivia dentro da total normalidade.

 

A conclusão é que parte significativa das transacções registadas em Abril, e algumas daquelas que ocorreram em Maio e Junho, deverão ter sido fechadas e pagas parcialmente no 1º trimestre, antes da crise pandémica. E a leitura dos dados publicados pelo INE, seja quanto ao número de transacções ou à evolução do seu valor face ao trimestre anterior, deve ser feita à luz destas circunstâncias. Da mesma forma que, na eventualidade do número de fecho de negócios ter disparado no 3º trimestre, ser perfeitamente plausível que o aumento de transacções só ganhe expressão, no relatório do Índice de Preços da Habitação do 4º trimestre.

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